domingo, 27 de março de 2011

FALANDO SÉRIO: LIÇÕES SOBRE AS DIFERENÇAS ENTRE O FALAR E O ESCREVER

Alexandro Venâncio da Costa Lopes[1]
Quando entramos no mérito da questão do “falar errado” entramos também em um campo minado pleno de perigos visíveis, mas que nos surgem como inofensivos, e outros ocultos profundamente incrustados nos conceitos ideológicos mais “naturais” dos indivíduos. Quando tentamos discutir a Língua em seu aspecto sociológico nossa abordagem não deve se fechar em aspectos estéticos, dogmáticos e, principalmente, gramáticos. Quando fechamos nossa visão nestes aspectos temos a ilusão que a Língua Portuguesa está morrendo nas bocas de pessoas sem educação e vergonha na face, e isto é um erro grosseiro, é discriminador e exclusivo.

Em primeiro lugar, existe uma grande diferença entre o “falar bem” e o “falar correto”. O “Falar Bem” se refere a todo o conjunto da Retórica, técnicas de Oratória, construção do discurso, entonação da voz e cuidado com as palavras a serem pronunciadas. Este conceito não tem ligação alguma com o “Falar Correto”, que se refere a um dialeto socialmente privilegiado e repleto de sentidos discursivos exclusivos e marginalizadores. Uma pessoa do campo pode “falar bem” com toda a propriedade de um ótimo advogado, usando seu dialeto compreensível aos seus iguais, enquanto um médico de uma grande cidade pode “falar errado” em seus momentos de descontração com a família. No entanto, tais diferenças estarão melhor definidas mais adiante.

Em segundo lugar, a linguagem oral não é a mesma coisa da linguagem escrita. Embora a segunda seja produto da primeira, nossa cultura educacional, ainda estruturada segundo os moldes da educação tradicionalista, acaba nos ensinando dois grandes erros, o primeiro que as duas formas linguísticas são a mesma coisa chegando ao ponto de confundir letras com sons. O segundo, que falar bem é falar como se escreve.

Como já dizia minha eterna professora de Linguística, em sua bela construção poética e didática, a Língua Falada é como o grande rio Amazonas enquanto a Língua Escrita, um pequeno igarapé. A Língua Falada obedece a regras e convenções próprias, ela reflete o grupo social que a utiliza, e, portanto, ela é cultural. A Língua Falada muda, sim isso mesmo, ela muda, ela se transforma, nela palavras caem em desuso e novas palavras construídas ou importadas de outras línguas, e, portanto, ela é histórica. A Língua Falada, por representar grupos acaba se tornando uma marca, um estigma para grupos socialmente excluídos e marginalizados, e assim, ela é social e política. A Língua Falada é viva, avassaladora e dinâmica, e não precisa ser salva.

Agora a Língua Escrita, em seu igarapé repleto de juncos e vitórias-régias não possui o mesmo ritmo. Ela é uma representação gráfica da Língua Falada de um determinado período, onde um determinado grupo social convenciona seu uso, e com o passar do tempo vão ajustando o que é necessário para torná-la mais uniforme para todos os grupos falantes da mesma Língua. O ritmo de mudanças é lento, as águas deste braço do grande rio são extremamente calmas, mas em determinadas épocas o grande rio, em épocas de cheia, traz novas águas e transforma a Língua Escrita. Caso deseje um teste empírico simples, procure um livro, qualquer obra, mas sugiro Machado de Assis, da década de 1950, 1960 ou até mesmo, 1970 e compare as estruturas linguísticas e as palavras usadas com os mesmos livros vendidos hoje. É nesse igarapé que os especialistas do “bem escrever e do bem falar”, das gramáticas normativas e alguns outros que tentam “salvar a Língua” se banham e matam a sua sede, e alguns gostam tanto desta calmaria, constroem moradias em suas margens e acabam esquecendo que a Língua verdadeira está logo mais, viva, dinâmica e pronta para mais um processo de enchentes.

A partir destes parâmetros para discussão podemos entrar nos ramos da Sociolinguística, da Semiótica e da Análise do Discurso. Embora outras áreas da Educação, Psicologia Social, Antropologia, Sociologia, Ciência Política, e até mesmo da própria Linguística tenham muito a dizer sobre o assunto, e poderíamos bem elencar todos, este texto ficaria muito extenso e creio que não atingiria o objetivo neste momento. A partir deles, vou discutir um pouco sobre a Língua Portuguesa falada, suas funções e representações sociais, e não pretenderei me deter na Língua Escrita, pois esta já é normatizada e representada por diversas instituições, como a Escola, Academia, ABNT e poderes estatais brasileiros e internacionais de línguas lusófanas.

Para exemplificar a discussão, podemos trazer a seguinte frase: QUEM DIZ QUE É DO MATO GROSSO NÃO É DE MATO GROSSO[2]
 
Para os normativos de plantão, tal frase está corretíssima e passível de reprodução fiel e cheia de explicações, também normativas e sintáticas, uma vez que a partícula DO é um termo possessivo formado por DE + O e que transmitiria a idéia de o indivíduo ser oriundo de um mato qualquer, sendo o correto então utilizar apenas o termo DE, que se refere à origem. Gramaticalmente e estilisticamente tal explicação é válida, uma vez que não podemos saber quem irá ser o texto, não conhecemos anteriormente sua bagagem social, cognitiva e histórica, nosso texto deve ser claro e objetivo. E, a menos que seja esta a intenção, não podemos deixar nosso leitor na dúvida se estamos falando de um matagal ou do Estado de Mato Grosso.

Contudo, para a semiótica, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido, tal frase dita por um falante brasileiro da língua portuguesa está correta, já que para todos os brasileiros é de notório conhecimento sobre a existência de um Estado de Mato Grosso, que fica na região central do país, então na formulação da frase o falante não sente a necessidade de emitir a frase completa: EU SOU DO ESTADO DE MATO GROSSO, e economiza na saliva e no fôlego e diz somente: SOU DO MATO GROSSO, e é compreendido pelo seu ouvinte, caso não seja, há possibilidade de explicações.

Já para a Sociolinguísta ou para a Análise do discurso a frase é equivocada e carregada de significados históricos e ideológicos. Ao introduzir o verbo DIZ na frase sinaliza-se uma marca de oralidade, estamos estabelecendo uma regra normativa para a Língua Falada. Introduz-se aí o discurso integralista do período ditatorial de modos de “falar correto”, que acabou por se tornar um processo de marginalização, exclusão e anulação da identidade dos grupos sociais que não falavam deste modo, tais como os nordestinos, “caipiras” mineiros, goianos e paulistas, os grupos das periferias, entre tantos outros.

É preciso entender que a Língua Portuguesa não é uma entidade astral única que nos concede o dom da fala, e, deste modo, deveríamos respeitá-la e falar da mesma forma. Língua Portuguesa é o nome dado a todo um conjunto de dialetos e variantes lingüísticas que podem manter comunicação entre si, por exemplo, um nordestino consegue conversar com um paranaense ou gaúcho normalmente; nós brasileiros podemos conversar com portugueses ou angolanos sem grandes obstáculos na compreensão. A este fenômeno dialógico dá-se o nome de Língua, nós possuímos estruturas lingüísticas semelhantes que possibilitam a comunicação, e assim, todo modo de “falar” é correto e representativo. Caso desejem saber mais sobre tudo isso, busquem a leitura dos livros Preconceito Linguistico: o que é, como se faz e A Língua de Eulália, ambos de Marcos Bagno.

Nas obras o autor vem delimitando os espaços de análise da sociolingüística e desvelando este preconceito sutil com relação às pessoas que “falam errado”, que por sinal seriam os nordestinos, indivíduos provenientes do meio rural ou das periferias das cidades, negros quilombolas, analfabetos, jovens, entre outros grupos. Para ele o preconceito linguístico não se deve ao uso da Língua em si, mas sim à representação social do indivíduo, discriminar um indivíduo que diz “nóis vai”, por exemplo, é discriminar sua história social oriunda de setores agrários de um Brasil latifundiário e atrasado, ao dizer que seu falar é errado não é se referir discriminativamente apenas à sua variante linguística, mas sim rejeitar sua classe social e a história de sua identidade cultural.

Tal discurso de “limpeza lingüística” teve grande validade durante os períodos de Ditadura no Brasil, uma vez que, enquanto estratégia política, nestes períodos buscou-se realizar o ideal de Nacionalismo e integração das diversas regiões do país, e para isso deveria ser criada uma Cultura Nacional que sobressaísse às diferenças regionais e grupais, e como desde os tempos da Roma Antiga já sabemos que para dominar qualquer povo é preciso impor-lhe a língua do dominador em detrimento de sua própria língua. Assim, em prol da Língua Portuguesa Nacional que deveria ser a mesma para toda e qualquer parte do país, seguindo a mesma estrutura e pronúncias, que seguiria os moldes da variante falada pelos detentores do poder, toda variação desta seria considerada “errada”. Discurso comprado e difundido pela Educação, em todos os níveis.

Resultado: Conseguiram. Até os nossos dias, vinte e cinco anos depois do fim da Ditadura ainda temos, entre os falantes da Língua Portuguesa, a consciência de que falamos uma língua extremamente difícil, e ainda não a falamos “corretamente”. Rejeitamos nossa identidade regional e histórica, temos vergonha dos nossos familiares e entes queridos que exercem seu direito de usar seus dialetos. E o pior, discriminamos, rejeitamos e desqualificamos hipocritamente as pessoas utilizando seu modo de falar e em prol de uma Educação Linguística esmerada, mascarando nossos reais preconceitos. Ainda continuamos a rejeitar as diferenças idiossincráticas dos cidadãos brasileiros, como se não tivéssemos o direito igualitário de sermos diferentes dos demais, continuamos a excluir grupos sociais legítimos e possuidores de culturas únicas e socialmente importantes por não desejar sua inclusão política. Até quando continuaremos de olhos vendados para a realidade que está do lado de fora do nosso mundinho fechado?

Concluindo, deixo muito bem claro que minha posição é em prol das identidades culturais e do direito constitucional de igualdade e de livre expressão. Se em estou entre minha gente, vou falar meu dialeto “mineirês” sim. Mas também tenho plena convicção que, como já evidenciou Bourdieu, enquanto ente social, devo compreender que é preciso adquirir capital social e cultural de todas as formas possíveis para melhor empreender estratégias sociais mais eficazes. Falar o dialeto culto, também chamada de “norma culta ou padrão”, faz toda diferença em determinadas situações e ambientes, é preciso aprender a viver socialmente e saber administrar nossas estratégias políticas do dia-a-dia. É preciso entender e ensinar o respeito às diferenças, toda e qualquer uma, e assim o professor de Língua Portuguesa nas escolas não deve ser apenas um ditador de regras normativas a serem aplicadas em análises sintáticas desconexas de realidade, deve ensinar sim a variante “culta”, deve ensinar sim a escrever bem, e, também, ele deve ser um pouco de sociólogo mostrando as diferenças entre os falares de cada cultura e de cada grupo, a “norma culta” e onde é possível usar cada uma, e assim ajudar a entender os motivos das grandes diferenças, por exemplo, de um político que fala a língua que seu povo entende, como faz o ex-presidente Lula, e de um advogado diante de um tribunal defendendo seu cliente.




INDICAÇÕES DE LEITURA

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. Edições Loyola.

____________. A Língua de Eulália: novela sociolingüística. Editora Contexto.

FOUCALT, Michel. Isto não é um Cachimbo. Editora Paz e Terra.

____________. Vigiar e Punir. Editora Vozes.

McCLEARY, Leland. Sociolinguística. Disponível em: http://ecs.futuro.usp.br/docs/Sociolinguistica.pdf

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Editora Perspectiva.

Semiótica: Perguntas e respostas. Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/cos/cepe/semiotica/semiotica.htm

 


[1] Alexandro V. da Costa Lopes é Licenciado em Língua Portuguesa e Inglesa e respectivas Literaturas pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso – UFMT e Pós-graduando Latu Sensu em Gestão Estratégica do Setor Público pelo Instituto Cuiabano de Educação – ICE.

[2] Uma frase tão bela e didática quanto “Ivo viu a uva”... (também sou humano, oras pois...)